quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

19h47

Há momentos em que recordo coisas que não vivi, que me lembro do quão perto tiveram. 19h47. Próxima estação: Pragal. Mandaram-me para a baixa. O médico já estava farto de me aturar, já era a terceira ou quarta vez que estava a pedinchar a reforma. Chama-o lá. Já não posso ver o gajo à frente.
Heroine, it's my wife, it's my life.
Uma porca e ainda queria que eu subisse na cadeira para limpar a sujeira toda, eu que ainda estava de muletas do acidente das escadas! Dois lances de escada e o que me amparou foi a cabeça. Tu tens a mania das limpezas, quem te manda lavar o corrimão?
19h49
Relembro a noite fatídica. Não abras a boca. A pistola apontada ao escuro das escadas. Lembras-te da engomadeira, que vivia num vão. Se eu correr agora, só me apanha a perna.
Sabes o que o bombeiro disse? Que só tinha corrido bem porque tinha as pernas gordas! Ahahahah! Eu ali, toda rasgada, sem saber a que país pertencia, e o homem a olhar-me nas pernas, o sem vergonha. Ahahahah!
Os livros caem no chão. Tanta sabedoria para ficar ensopada de sangue num vão de escada de madeira, em frente ao banco onde o senhor António fazia os biscates de sapateiro. Eu que sempre fugi dele, desejava agora ouvir o rádio. Bola branca. Pum. Corre.
20h01, próxima estação: Corroios
Ó homem, já não o posso ver. Acha que consigo reformá-lo por causa do dedo do pé? Eu passo o dia em pé! Olhe, arranje uma cadeira e sente-se. Você vai fazer tudo o que eu disser. Sai daqui, vai à farmácia, compra estes medicamentos todos e não toma, quando o chamarem, só tem de fingir-se maluco.
Eu tenho lá tempo para mim, mulher! É sair de casa de noite, chegar à noite, servir o homem e amanhã é um dia novo, igual ao outro. Quando me pintei, não sabes o problema que foi porque tinha outro: Maria, estás-te pondo bonita para quem? Vai limpar essa cara que mulher minha não sai nesses preparos. Ahahahahah.
I don't know just where I'm going
20h11 próxima estação: Foros de Amora
But I'm gonna try for the kingdom, if I can
O braço apertado. Primeiro à mãe, depois a ti. A mãe não foi a lado nenhum. Vamos passar o Martim Moniz. Dou-te a mão. Aperto-a. Não vais a lado nenhum. Procuras escaramuças que te negam por causa da tua fraca figura, meu menino jesus. Vou cuidar sempre de ti, pelas estradas principais.
Tou? Estou no comboio. Não, não te disse que ia chegar atrasada. Há peixe frito e arroz de pimento no frigorífico. Eu é que sei do teu cartão?! Eu sou a tua mãe?! Não, eu vou com a Maria. Vai comendo que eu não tenho fome. Comemos uma talhada de melancia antes de sair. Eu já estou a chegar.
20h15, não me lembro onde, temperatura exterior, 11 graus
Sai da minha cabeça, dá-me paz, senhor adormece-me. Tudo se atrapalha em duas linhas que se cruzam na minha cabeça. Há muita luz. Oiço tudo, todos, mães que conversam sobre filhos, homens que jogam algum jogo que tem bolinhas, vejo um filme de esguelha no telemóvel do lado. Cega, surda e muda, como a justiça.

sábado, 8 de novembro de 2014

O capitalismo do amor

Tive uma ideia para ultrapassarmos a crise. Tudo se resume a investir no amor. A ideia é muito simples e tive-a, obviamente, porque estou loucamente apaixonada por uma pessoa. Há quase dez anos. A minha ideia fundamenta-se na minha profunda necessidade de fazer tudo bem durante o dia de trabalho para juntar-me ao meu amor, à noite, para traçarmos grandes planos, orquestrámos corajosas empresas, com nome, NIF e planos de negócios. Ideias que nascem do puro amor um pelo outro e que são tão boas, porque se consubstanciam na inevitabilidade de sobrevivermos como par, como amantes. Não peço um subsídio para o amor, mas reitero a atenção que as empresas deveriam ter para com os contextos amorosos, onde pululam ideias, vontades, e filhinhos para nascer. Apostem no nosso amor e nós faremos crescer os vossos negócios. Porquê? Porque faremos tudo para estarmos juntos.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Resiliência

Hoje, ouvimos música pela primeira vez. Tu estás na cozinha há horas a fritar peixe, a fazer sopa para a semana, entretido na tua forma de afastar a tristeza. A música continua a mesma, transporta-me aos mesmos lugares de sempre, o que me dá uma certa esperança de que continuo, lá no fundo, a ser a mesma pessoa. Vamos escavando, recordando as boas memórias, suspendendo por esta noite o que nos tem apertado o coração e intoxicado o sangue. Acreditemos em nós, na nossa força cavalar e, nos momentos mais frágeis, que possamos esconder os olhos por debaixo do braço um do outro e dividir a dor. Como diz o prato da cozinha dos meus pais: "eu para ti, tu para mim, nós para os nossos filhos".

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Na tua partida

No dia em que o meu filho se vai embora deste país acordei com um torcicolo bravo. Mais forte o desejaria se me permitisse escrever isto com sotaque brasileiro, um mergulho no coração, uma leveza de anca, chora que ri, ri que chora. 
No dia em que o meu filho se vai embora deste país eu queria espremê-lo novamente entre as pernas, cheirar-lhe o cucuruto, limpar-lhe o cocó do rabo e enchê-lo de cremes caros, daqueles que cheiram a pasta de fígado de bacalhau e deixam memórias nos dedos.
No dia em que o meu filho se vai embora deste país eu queria dar-lhe uma lição de história, sem ser envergonhada, falar-lhe dos feitos quotidianos da família que lhe dá nome, deste país que sorri e se encolhe de vergonha a seguir.
No dia em que o meu filho se vai embora eu queria dizer-lhe que se orgulhasse de mim e do pai, que nos amámos às escondidas e o fizemos com vontade e orgulho, tanto quanto como nos separámos e o colocámos num pedestal intocável. O teu pai terá muito orgulho em ti, filho. Eu sei.
No dia em que o meu filho se vai embora deste país eu queria dizer-lhe que fosse honesto, grato, amigo do seu amigo, sonhador, realista, sem limites. O mundo é teu, consoante o que fizeres com a tua vida. Não guardes rancores e amores, as palavras foram feitas para serem ditas e os sentimentos para serem sentidos. Não acredites em fins, nem em buracos negros, são só uma questão de perspectiva. Os nossos deuses seguram-nos e, no fim da linha, há sempre uma luz. 
No dia em que o meu filho vai deixar este país quero dizer-lhe que aos 17 o mundo é nosso, mesmo que pareça estupidamente inalcançável como o sonhámos, que um par de cuecas e um livro fazem mais por nós do que as burocracias com hora marcada e os acontecimentos previsíveis.
No dia em que tu, meu filho, vais deixar este país, quero que te lembres que há um território ao qual pertencerás para sempre, que te acolhe na presença e na absência, nas palavras e no silêncio, no riso e no choro, e esse território, o nosso coração, é nosso, e só nós instituiremos os seus desígnios. Por favor, sê feliz.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Quando era pequenina, questionava-me sobre se deus ouviria as minhas preces sem som, se deus seria capaz de ouvir o que dizia e pedia em silêncio. Hoje voltei a pensar nisso e dei por mim a achar puerilmente ou felizmente que sim. Deus ouve os meus pensamentos e os meus desejos. Deus e os meus pequenos deuses. Largada nestes pensamentos obtusos, reparo, neste fim de tarde asfixiante, no homem velho e tisnado que fala francês com o neto-filho, no jardim da casa que ele próprio ergueu com as mãos e anos de trabalho em França. É francês. Já falaram sobre a morte, agora falam sobre a presidência da Europa. Ele, o pequeno francês, dá toques na bola, o velho português aproveita a brisa para se enfiar no túnel de terra que tem vindo a escavar e que levará água a casa e às amoras que diariamente nos oferece. É feliz. Sabe que só voltará definitivamente a Portugal para morrer. Que conversas terá ele tido com deus?

domingo, 29 de junho de 2014

Banho maria

A primeira pergunta. Como vou escrever isto se a mão direita está enfiada na tua barriga peluda, à mercê de mordidelas de amor que deixam sangue?
Estou tão zangada hoje, tão zangada que nem o teu ron-ron mecânico me acalma. Os últimos dias de espera, num local que quero esquecer, que é meu e me deu tudo, mas que hoje já nada tem para mim. Um adormecimento entre as oito e as dez da manhã que confirma a enfermidade. Dêem-me novidades que eu não fui feita para esperar e para ser paciente. Eu quero sair daqui, começar quase tudo de novo, estrear umas cuecas, voltar a fazer planos, voltar a poder fazer-te surpresas, surpreender-me a mim, mas não me deixem morrer em lume brando porque eu não sou um chispe. Quero voltar a falar como se o infinito estivesse preso numa das mãos e a gargalhada o soltasse e o eternizasse na noite como um eco de que nos lembramos quando estamos perdidos. Quero voltar a desenhar os meus sonhos, tortos e manvos, mas sonhos, e deixar de acordar porque o que aguardo - seja isso o que for - não acontece. Quero recuperar a minha autonomia literal e a minha pseudo literariedade. O resto quero mesmo que se foda.

terça-feira, 10 de junho de 2014

As contas do dia

Já não sei há quantos anos te conheço, mas sei que mesmo sem saber as contas de cor, conheço o teu corpo melhor que qualquer dia da semana. Por nós não passaram anos, passámos nós, passaram momentos, planos, orçamentos, beijos de vergonha, de desculpa, olhares no chão, mãos no peito. Não gosto de contabilizar nada, nunca fui boa a matemática. Para mim, o deve e o haver são coisas que sinto, não consigo transformá-las em números. Nunca teria jeito para o negócio, não nascemos para calcular, mas para fazer. Foi bom, não foi?

Final da tarde

Aproveitar o dia aqui é aproveitar das seis da tarde em diante, quando o Sol é suportável e só temos de catrapiscar os olhos se quisermos ter uma conversa cara a cara, que usualmente deixamos para horas mais tardias. Agora, há um vento quente a que a gente se habitua com os anos, que ao princípio quase sufocava e agora até sabe bem. A esta hora aqueço os pés ao sol, no cimento quente, por onde passam linhas e formigas que não descansam. Os pássaros barafustam antes que a noite caia e apanham pedacinhos de palha para fazer o leito nocturno. Daqui a uma ou duas horas cedem os sons às cigarras e aos sapos enormes. O vento continuará frio até que os pés se enregelem e peçam o pecado de umas meias quaisquer. Vêm os mosquitos que comem de nós até rebentar, cabeça, pés, dedos, tudo lhes serve. São como amantes vorazes que depois de estar tudo feito, voam para outras paragens. No dia seguinte, é tudo igual.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Amazonas

Noutro dia, já não me lembro quando, porque não ligo ao calendário, sonhei com um grande exército de amazonas com plano marcado para o próprio dia: iam fecundar-se obrigando todos os homens à face da terra a com elas se deitarem. A líder era a minha mãe, mas eu também marcava uma presença envergonhada no grupo. Ela gritava, irreconhecível. É hoje! É hoje! Hoje é o nosso dia fértil! Não os deixem escapar.
Não pode ser amanhã?
Não. Tem de ser hoje.

Quem explicaria isto? Freud ou a menopausa que se assoma?
Acordei a suar, numa grande aflição por não saber como cumprir a tarefa sem desiludir a minha rica mãezinha.

As águas de Maio

Nem a chuva deu o ar da sua graça. Caiu, timidamente, não o suficiente para regar as árvores ou as couves chinesas que crescem nos antípodas. Nem o carro lavou, nada. E eu que hoje só me apetecia diluviar, deixar-me ir na lassidão da tarde extemporânea, tirar a roupa e as conformidades e deixar-me levar, lavar. Hoje é um dia importante no calendário. Não porque chove ou alguém faz anos, mas por uma razão tão prosaica como ter decidido excluir uma palavra do meu dicionário. A palavra é urgência. Olho pela janela e os únicos que parecem ter urgência são sempre os mesmos: os coelhos que fogem, os ratos que temem pela vida ao olho do falcão, o cão que tem fome, o menino a quem lhe dói a barriga. Isso são urgências, emergências. Nunca mais me dirão: faz, é urgente. Nada é urgente quando não há tempo delimitado e hoje um dos meus calendários fechou-se. Não me venham com urgências e exigências, não abusem da palavra ao desbarato. Uma urgência é um caso de vida ou de morte. Sejam mais literais. Da próxima vez que ouvir: é urgente, replicarei com apenas os coelhos, os ratos, os meninos e os velhos têm urgência. Nós temos tempo. Todo o tempo do mundo para fazermos aquilo que fazemos da melhor forma que o sabemos. E agora, vou ver se chove.

domingo, 18 de maio de 2014

Primavera

Há dias em que até tenho medo de ir lá fora, deitar-me ao vento e aos pássaros e ao aroma psicotrópico de exala o jasmim, a madressilva e o maracujá. São dias perigosos de coração sem rédeas que se deixa ir. Experimento. Se não me mexer estou a salvo. Deito-me no baloiço, fecho os olhos e tento abstrair-me pelo som do vento, os badalos das ovelhas e o frenesi sexual da passarada. Sim, eu sei, os sons aqui são sempre iguais, o que muda é o ouvido de quem os ouve. Há dias em que quase não se ouve nada e há outros, como este, que há uma orquestra lá fora. O meu coração a trote do pensamento que se mistura com um aperto bom no coração, uma bola que sufoca a garganta e um nervoso infantil de apaixonados. Como dizia o outro, o amor é mesmo fodido. Vem e volta, sempre igual, tenhas doze anos ou setenta. Pelo menos, na cabeça. É daqui que o meu hoje não vai sair. Assim tenha rédeas nesta natureza que desperta.

sábado, 17 de maio de 2014

No primeiro beijo, as bocas engolem-se

No primeiro beijo, por muito romântica que seja a imagem de dois lábios que se tocam, as bocas engolem-se. O primeiro beijo anuncia o que vem de seguida e resume o que se passou antes: dois corpos indistintos e dois corações ansiosos.
Lembro-me do nosso primeiro beijo.
Demorou algum tempo a acontecer, não por falta de atrevimento meu, mas por medo. E se não gostasses? E se a vontade de um beijo fosse só do meu cérebro toldado pela paixão? Tanto medo e nós já adultos, vidas anteriores, filhos, e o medo de um beijo que já havíamos dado com os olhos e com o corpo.
E o beijo chegou, 350 quilómetros depois do início da viagem, a minha mão a colocar a terceira mudança no carro para tocar na tua, na recepção de um hotel numa terra estranha, quente, insuportavelmente quente.
E nessa recepção era como se ninguém existisse. O beijo que surge quando se firma uma assinatura no quarto, um acordo pré-nupcial da minha permanência em ti. Duas bocas que se engoliram, dois corpos colados, fora do tempo e do espaço, dois espanhóis a saborear um bagaço intragável e o beijo que tinha dentro trinta outros beijos que tinham ficado por dar. Nunca mais perdemos tempo.

Inspiração

Há coisas sobre as quais ainda não consegues escrever e resta a dúvida se um dia conseguirás. Talvez haja coisas que nunca podem ser escritas e que se infiltram em buracos e túneis e ficam presas à parede do coração como limo nas rochas da praia. Se me perguntares se as queria escrever, hoje já não sei. Certeza única de que ter algo para escrever e não conseguir é como um doce com que se acena a uma criança. Dá vontade de continuar, rondar, andar às voltas e só dar só uma chupadela para não acabar. Há coisas que custam muito a mover do coração para a cabeça, e agora, talvez mereçam ter apenas o papel que lhes reservei - ingredientes bons e maus do que me tornei.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Pânico

É preciso escrever, escrever, escrever, muito, muito rápido, e tentar acompanhar a sensação - de onde vem a sensação? A cabeça e o coração a disputar protagonismos, como se tivesse alguma importância este momento que se vive aqui em mim a muitos quilómetros por hora. Calem-se todos, deixem-me ouvir o que o corpo diz e não me atrapalham que o tempo não se pode perder e eu tenho de sentir, sentir muito, pensar na sensação, deixá-la sair do coração e resgatá-la no cérebro de onde nunca devia ter saído. Estás a sentir o calor que vem do peito, autêntico sol a pôr-se e para onde é perigoso olhar? E a barriga a contorcer-se? Estás prestes a ter um filho que não é mais do que uma invenção do cérebro, enterra-o lá. E os dentes que se cravam na língua e nas paredes da boca e rangem, rangem até fazer sangue? Usa-os para comer. Diz ao teu trapaceiro amigo cérebro que tens a lição bem estudada e que sabes por que razão as coisas têm uma função. O coração acelera-se e estende o raio de acção. Bate no peito, na virilha, no olho, tum, tum, tum, não sai de dentro dos teus ouvidos. Que venha alguém com uma mão secular e o arranque com força e rapidez. Não tenho espaço para um coração tão grande. O cérebro quase a ganhar-me e eu quase a deixar-me ir, derrotada, peço tréguas e proclamo-o dono e senhor deste corpo no limite, desgastado, corroído, suplicante. Nada que um calmante não resolva, penso. Penso eu ou sugere ele? Ponho em prática o que aprendi em anos de análise, tento relaxar e ver de fora, sentir e ser outra a explicar o que sinto a quem só se interessa por fenómenos químicos, com o pormenor de um legista que explica aos alunos onde começa um órgão e acaba outro. Isto passa. Passa sempre. Tu sabes. Sei? 

Planar

Neste final de tarde cujas cores convidam à melancolia, olho para o céu e vejo-te seguro, a planar, sem um bater de asas, assim minutos a fio, atento. E era assim que gostava de estar hoje, no céu, imóvel, a deixar-me levar pelas massas de ar quente e ar frio e, se não fosse pedir muito, que esse ar me entrasse pelo cérebro e o levasse para longe, no céu, vazia, a planar sem qualquer objectivo. Enquanto penso isto, do meu lado direito, um par de andorinhas pousadas no beiral ensaiam passos de amor, enquanto comem os insectos que desgraçados lhes caem no caminho dos bicos, máquinas automatizadas de alimentar crias. Ela olha para o lado, engole um insecto, coça o peito e ele aproveita essa distracção de um centésimo de segundo e voa-lhe para cima com grande alarido. As andorinhas não planam como um falcão. Ambos lutam pela sobrevivência, mas hoje uns tentam procriar e os outros procuram um qualquer bicho distraído que seja o jantar. Eu revejo-me em todos. Há dias que até desconfio que as galinhas são mais inteligentes do que eu e que este meu modo de ver só prejudica, um fardo que custa carregar e me impede de planar quando desejo. 

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Maio do meu contentamento

Maio, um nome perfeito para um mês perfeito, o meu preferido, o dos exageros, o das calmarias, o das flores e dos casamentos, o das noites longas e dos pés descalços, aquele que é sorvido, de 1 a 31, como se não existissem outros 11 meses.
Maio cheira a criança.
A primeira coisa que me vem à cabeça, quando penso em Maio, é o aniversário do meu irmão, casa cheia de gente, vestidos curtos, alças que se descosem. A segunda é o aniversário de casamento de meus pais, as festas íntimas, as piadas marotas, os presentes que as filhas escolhem.
Maio é o mês dos amores, perfeitos, imperfeitos, de curta ou longa duração, mas aqueles amores que chegam e abanam, como se fosse para morrer. Acho que é da luz. Depois da escuridão e da chuva e do frio, algo desperta em nós, e na natureza, de forma bruta: rápida e urgente. 
Em Maio revelam-se os corpos, e os cheiros e as modas, os morangos e as cerejas, e os braços nus que à noite se arrepiam. Noites em claro, madrugadas de amor, manhãs briseiras, multas nos carros esquecidos nas ruas pela urgência. Em Maio, todos devíamos ter desculpa para fazer loucuras. Há muitos meses para expiar a culpa. Este, não.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Noites rosa-choque

Sentada no alpendre quente, aqueço o rabo na brisa que cai - por aqui há sempre uma brisa - e olho o céu às fatias, rosa, azul, laranja, prenúncio de um amanhã quente. Penso em todos os animais que fizeram parte da minha vida e já se foram dela: a Pantufa, leal e chorona perdigueira, que aceitava máscaras, óculos de sol e até ser montada por uma menina infantil; Becas, o meu primeiro gato, sem dentes, sem um pulmão, mas com um coração tão grande que julgo respirava por ele; a Lola, gata independente, gata de costas de sofá e costas da dona; a Tina, a preta, esguia, pegajosa e ansiosa por um canto de pernas onde dormir; o Zé, gatinho persa com hálito de peixe e desejos de dormir na cabeça dos donos; a minha querida Xica, gata de oito vidas, a quem dei o último banho, a quem tratei e cuidei como um filho que sabemos doente para a vida, a quem aqueci na lareira, a quem encontrei enregelado longe da casa quente. Chorei todos como uma família, relembro todos, esta noite, e os momentos de felicidade e carinho puro que vivemos em noites assim.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Noites de inverno com gatos

Adormeço no sofá ao pé da lareira com dois gatos. Quando me dói muito o pescoço, subo as escadas para a cama, sem luz, tropeço num gato que me aguarda num degrau e quase me estatelo no chão. Na cama aguarda-me outro gato, cuidadoso, que se enrosca por cima da manta aos pés. Lavo os dentes e dois gatos, sentados à soleira da casa-de-banho, aguardam que me despache. Está frio para andarmos de um lado para o outro. Entro na cama gelada e estico os pés para que cheguem ao local aquecido pelo gato educado, coloco as pontas dos dedos por debaixo da sua pancinha quente. Adormeço. A meio da noite, agarro-me ao meu amor e estranho os pêlos que tem, abro um olho e o meu amor é um gato branco, olha não, afinal é mesmo um gato, o meu marido está do outro lado, dá para lhe reconhecer os ombros. Viro-me, porque há um hálito quente que cheira a peixe; não desgosto. Subitamente, sinto um peso em cima das costas e é outro gato que se consegue equilibrar no meu lombo. Fecho os olhos. Há muita gente a ressonar no meu quarto. Adormeço embalada pelo sono de tantos anjos. De manhã, acordo às 07:44, sem o despertador, saltam três gatos da cama, miam e olham para mim. Abro o olho e vejo que é sábado, que não há necessidade de acordar tão cedo, está frio e não tenho nada para fazer. Puxo o cobertor para cima da cabeça e tento dormir. Um gato sobe para cima da almofada e faz-me um cachecol. É bom. Adormeço. Uma hora depois, já fartos da minha preguiça, passam pela minha cabeça, cheiram, miam, há um que me dá uma ligeira patada, sem garras. Ainda resisto. Olho para todos, sentados no chão à minha espera. Levanto-me, lavo os dentes e a cara com água gelada, todos sentados à soleira da porta, e quando visto o robe, desatam a correr e a escorregar e a tropeçar uns nos outros para descerem a escada. Desço a escada e cada um está à frente da sua taça vazia. Encho as taças de comida e uma grande com água, preparo uma torrada para mim e um copo de sumo. Sento-me à mesa a olhar para o quintal. Os cães já dormem ao sol. Duas garças pousam no terreno da horta e debicam as sementes que tanto trabalho deram a plantar. Está frio. Dirijo-me à sala e a lareira ainda está moribunda. Coloco uma pinha e é como se lhe fizesse respiração boca-a-boca. Renasce. Dois gatos miam junto à janela, querem sair. Abro a janela, saem os dois e fico com um monte de pêlo branco na sala, junto à lareira, a beber café. Para o gato, o dia acaba e começa naquele sofá. Resisto ao apelo da lareira, subo, ligo o computador, reparo que é sábado, e escrevo isto.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Decisões

Ai quem me dera ser livre, como hoje me disseste, parar o carro, correr, correr por entre os sobreiros até não haver rede no telemóvel, até nos conseguirmos esquecer para onde era o caminho. Pegar no que somos, que já é uma gigante forma de ser, e sermos fiéis a esses princípios, ou não, tanto faz. Eu sei o que eu quero, e o que eu quero não é isto: envelhecer os olhos num écrã de computador, moldar o rabo e adiar a bucha, porque é preciso responder no momento e lutar por aquilo que não é nosso, não é de ninguém. Quero ver o teu sorriso sem ser de esguelha, quero prová-lo, desafiar-te para algo novo, para as gargalhadas infantis que esta vida nos mostra como um incómodo. Só quero ser feliz. Com pouco, com quase nada. Com tudo o que queremos. Não há volta a dar, nem conversa a ter. Um olhar triste que é uma decisão feliz.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Dia afunila como o coração

Agora que o dia está a chegar ao fim, e eu nem sei bem como começou, nem o que sucedeu, deparo-me com uma pergunta tão inútil como a perplexidade com que deslumbro diariamente o sol a pôr-se: como se sente um coração angustiado? Pequenino? Mirrado? Quase a sumir-se? Ou grande demais para o buraco que deus lhe reservou? Quase a rebentar as amarras da carne e dos ossos? Penso que a resposta certa é: tem dias. 
Hoje, voto na segunda opção. O meu coração angustiado está tão cheio que parece explodir, ter espaço para os cinco continentes, hemisfério norte e sul, e depois um garrote, como uma gorda se aperalta para parecer magra e corta com a ponta da faca com que lambusou o pão com manteiga, mais um buraco na fivela do cinto.
A dor anula a existência, o espaço, o tempo e todas as coisas.
Não me macem com pentelhices. 
Deixem-me estar e fujam caso oiçam um estrondo.

domingo, 23 de março de 2014

Papi

Eu, que só sou crente aos deuses que eu própria deifiquei, peço que hoje oiçam os meus pedidos, me dêem um sinal, me injectem de um sono apaziguante e esperançoso. Não há palavras que descrevam esta angústia, este pedaço de coração que emudece e se contrai dolorosamente ao imaginar-te nem sei onde. Onde estás, pai? Que é feito do teu sorriso maroto, da tua mão peluda que me afaga a cabeça? Hoje, mais do que nunca, preciso de saber que me ouves, que sabes que preciso de ti imediatamente, que me ajudes a resolver mais este problema que é o medo aterrador de te perder. Que é feito das nossas vidas sem o teu colo para repousar a cabeça? Pai. Ouve-me. Preciso de ti. Manda-me um sinal numa estrela que caia, uma gota de chuva que me caia na testa, ou então um sinal diferente, imaterial, de que estás connosco aqui e agora. Papi, tu fiómo.

sábado, 8 de março de 2014

Cigarras, sapos e andorinhas

Não era preciso o uso de mais nenhum químico. O sol chegou, abrasador como só o Alentejo lhe permite, e com ele trouxe um mundo de lembranças remotas, um mundo preguiçoso, paradoxalmente em actividade frenética para o qual só me apetece olhar, adormecer nele, acordar nele, ficar nele, senti-lo as vinte e quatro horas do dia. Ao contrário do Verão, a Primavera é uma estação com horas distintas que o corpo conhece, e é de aproveitar até às seis, que logo a seguir, depois do sol se pôr começa a brisa gélida que enrijece o suor acumulado no corpo e pede exagero no agasalho. Dorme-se com as mínimas janelas abertas para ouvir tudo e sentir tudo: desde a cacimba à geada da madrugada, ao degelo de tudo e à actividade estonteante dos pássaros. Lembro-me de ouvir dizer que o som dos pássaros era tão ensurdecedor que impedia o sono. Habituei-me depressa. Gosto desta estação porque é de extremos, é inconstante, pede uma noite nua e um cobertor que se puxa quando a lua vai alta. Um sono preguiçoso de manhã, um pequeno-almoço demorado, o regresso ao sono embalado pelo frenesi e pela brisa refrescante e orvalhada. Uma vontade tão forte de pés nus como se nunca um dia tivesse sido preciso cobri-los. Não me admira que os pássaros andem doidos a reconstruir em tempo recorde os ninhos abandonados no Verão passado, e as cegonhas gritem ta, ta, ta, ta, ta. Se tivesse asas, eu própria lhes responderia no mesmo tom. E depois, fazer filhos.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Tenho um pesadelo encravado na garganta

É preciso extirpá-lo sem medo de sujar as mãos, quando um pesadelo se encrava na garganta, não desce, não sobe boca fora. Uma cabeça de borrego perdida no chão que é preciso incinerar. Não me peçam coisas difíceis. Eu não sei incinerar um pesadelo quanto mais a inocência de uma cabeça de borrego. Uma boca que escorre golfadas de sangue, antes de um fim conhecido. Uma mão que violenta, massacra, para diminuir o tempo de chegar às cenas do próximo capítulo. Uma culpa lastrosa, milenar de uma coisa que se tem de fazer para sobreviver. O tempo cura quase tudo, mas, à mínima preguiça da consciência, ao pequeno passo em falso, surge tudo, com uma crueza que se multiplica pelo tempo que já passou. É preciso escrever, vomitar este pesadelo, desalojá-lo do corpo, pelo menos. Dar um pouco de espaço para o ar entrar e fazer a sua corrente que finge tudo levar. Quase tudo.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Poema sem sentido, como nós

Há pessoas que perguntam
foi bom? 
Depois há as outras que pedem
fazes-me uma torrada? 
Será pragmática
sintáctica 
ou 
Electricidade estática?

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O frio é triste

Enquanto a lareira fumega, eu enfio a cabeça lá dentro e fumego também. Fumego na vida e no trabalho e nas obrigações. Como é possível agir quando as mãos e os pés estão gelados? Assim não, primeiro, deixem-me aquecer um pé de cada vez e alternar as mãos com que escrevo, para nenhuma ganhar vantagem. O frio é a maior tristeza da vida. Quando era pequenina, e hoje, que continuo a medir 160 centímetros, o que mais me fazia temer a morte era o frio da morte, o frio de uma campa à noite, à chuva, ao vento. Morrer sim, mas só no verão, e de preferência com companhia. E longe da praia, que mesmo no verão, quando anoitece, gela-nos os ossos até nunca nos esquecermos do poder avassalador do frio. Era para ser uma noite de rebeldia e amor, mas foi apenas uma noite para esquecer, o frio na praia, a procura de posições que fizessem emanar calor de dois corpos, rochas como abrigos - percebi porque dormiam em grutas os homens antigos - uma pequenez, um futuro que não existe sem ser aquele, dois corpos a tremer, dois corações acelerados pelas razões diferentes da que se quer. O frio e a tristeza só são suportáveis porque lhes é inerente o seu oposto, e é bom que contenham em si uma perspectiva disso mesmo. Acho que vou dormir, porque depois da noite há o dia.

Um bicho à solta

A coisa mais difícil é materializar as sensações, se fosse fácil, seríamos mais felizes, buscaríamos um livro, uma espécie de dicionário de sensações quando estivéssemos deprimidos, enamorados, zangados ou simplesmente felizes. Relembro então o dia em que como estranhos deambulávamos entre o corredor - e só de relembrar o meu coração acelera-se - à pressa, de fugida, e os nossos ângulos se esticavam para se tocarem, como se tivessem vontade própria. Dizia-te ao ouvido algo que não tinha nada que ver com o que sentia, alguma banalidade, uma parvoíce infantil, mas a minha respiração acelerada contradizia tudo. Um abraço que era suposto ser de carinho, apenas, o suor que denuncia o calor dos dois corpos, lábios que se esticam e só se tocam. A culpa. Vou fumar um cigarro e já venho.