terça-feira, 29 de abril de 2014

Noites rosa-choque

Sentada no alpendre quente, aqueço o rabo na brisa que cai - por aqui há sempre uma brisa - e olho o céu às fatias, rosa, azul, laranja, prenúncio de um amanhã quente. Penso em todos os animais que fizeram parte da minha vida e já se foram dela: a Pantufa, leal e chorona perdigueira, que aceitava máscaras, óculos de sol e até ser montada por uma menina infantil; Becas, o meu primeiro gato, sem dentes, sem um pulmão, mas com um coração tão grande que julgo respirava por ele; a Lola, gata independente, gata de costas de sofá e costas da dona; a Tina, a preta, esguia, pegajosa e ansiosa por um canto de pernas onde dormir; o Zé, gatinho persa com hálito de peixe e desejos de dormir na cabeça dos donos; a minha querida Xica, gata de oito vidas, a quem dei o último banho, a quem tratei e cuidei como um filho que sabemos doente para a vida, a quem aqueci na lareira, a quem encontrei enregelado longe da casa quente. Chorei todos como uma família, relembro todos, esta noite, e os momentos de felicidade e carinho puro que vivemos em noites assim.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Noites de inverno com gatos

Adormeço no sofá ao pé da lareira com dois gatos. Quando me dói muito o pescoço, subo as escadas para a cama, sem luz, tropeço num gato que me aguarda num degrau e quase me estatelo no chão. Na cama aguarda-me outro gato, cuidadoso, que se enrosca por cima da manta aos pés. Lavo os dentes e dois gatos, sentados à soleira da casa-de-banho, aguardam que me despache. Está frio para andarmos de um lado para o outro. Entro na cama gelada e estico os pés para que cheguem ao local aquecido pelo gato educado, coloco as pontas dos dedos por debaixo da sua pancinha quente. Adormeço. A meio da noite, agarro-me ao meu amor e estranho os pêlos que tem, abro um olho e o meu amor é um gato branco, olha não, afinal é mesmo um gato, o meu marido está do outro lado, dá para lhe reconhecer os ombros. Viro-me, porque há um hálito quente que cheira a peixe; não desgosto. Subitamente, sinto um peso em cima das costas e é outro gato que se consegue equilibrar no meu lombo. Fecho os olhos. Há muita gente a ressonar no meu quarto. Adormeço embalada pelo sono de tantos anjos. De manhã, acordo às 07:44, sem o despertador, saltam três gatos da cama, miam e olham para mim. Abro o olho e vejo que é sábado, que não há necessidade de acordar tão cedo, está frio e não tenho nada para fazer. Puxo o cobertor para cima da cabeça e tento dormir. Um gato sobe para cima da almofada e faz-me um cachecol. É bom. Adormeço. Uma hora depois, já fartos da minha preguiça, passam pela minha cabeça, cheiram, miam, há um que me dá uma ligeira patada, sem garras. Ainda resisto. Olho para todos, sentados no chão à minha espera. Levanto-me, lavo os dentes e a cara com água gelada, todos sentados à soleira da porta, e quando visto o robe, desatam a correr e a escorregar e a tropeçar uns nos outros para descerem a escada. Desço a escada e cada um está à frente da sua taça vazia. Encho as taças de comida e uma grande com água, preparo uma torrada para mim e um copo de sumo. Sento-me à mesa a olhar para o quintal. Os cães já dormem ao sol. Duas garças pousam no terreno da horta e debicam as sementes que tanto trabalho deram a plantar. Está frio. Dirijo-me à sala e a lareira ainda está moribunda. Coloco uma pinha e é como se lhe fizesse respiração boca-a-boca. Renasce. Dois gatos miam junto à janela, querem sair. Abro a janela, saem os dois e fico com um monte de pêlo branco na sala, junto à lareira, a beber café. Para o gato, o dia acaba e começa naquele sofá. Resisto ao apelo da lareira, subo, ligo o computador, reparo que é sábado, e escrevo isto.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Decisões

Ai quem me dera ser livre, como hoje me disseste, parar o carro, correr, correr por entre os sobreiros até não haver rede no telemóvel, até nos conseguirmos esquecer para onde era o caminho. Pegar no que somos, que já é uma gigante forma de ser, e sermos fiéis a esses princípios, ou não, tanto faz. Eu sei o que eu quero, e o que eu quero não é isto: envelhecer os olhos num écrã de computador, moldar o rabo e adiar a bucha, porque é preciso responder no momento e lutar por aquilo que não é nosso, não é de ninguém. Quero ver o teu sorriso sem ser de esguelha, quero prová-lo, desafiar-te para algo novo, para as gargalhadas infantis que esta vida nos mostra como um incómodo. Só quero ser feliz. Com pouco, com quase nada. Com tudo o que queremos. Não há volta a dar, nem conversa a ter. Um olhar triste que é uma decisão feliz.