terça-feira, 20 de maio de 2014

Amazonas

Noutro dia, já não me lembro quando, porque não ligo ao calendário, sonhei com um grande exército de amazonas com plano marcado para o próprio dia: iam fecundar-se obrigando todos os homens à face da terra a com elas se deitarem. A líder era a minha mãe, mas eu também marcava uma presença envergonhada no grupo. Ela gritava, irreconhecível. É hoje! É hoje! Hoje é o nosso dia fértil! Não os deixem escapar.
Não pode ser amanhã?
Não. Tem de ser hoje.

Quem explicaria isto? Freud ou a menopausa que se assoma?
Acordei a suar, numa grande aflição por não saber como cumprir a tarefa sem desiludir a minha rica mãezinha.

As águas de Maio

Nem a chuva deu o ar da sua graça. Caiu, timidamente, não o suficiente para regar as árvores ou as couves chinesas que crescem nos antípodas. Nem o carro lavou, nada. E eu que hoje só me apetecia diluviar, deixar-me ir na lassidão da tarde extemporânea, tirar a roupa e as conformidades e deixar-me levar, lavar. Hoje é um dia importante no calendário. Não porque chove ou alguém faz anos, mas por uma razão tão prosaica como ter decidido excluir uma palavra do meu dicionário. A palavra é urgência. Olho pela janela e os únicos que parecem ter urgência são sempre os mesmos: os coelhos que fogem, os ratos que temem pela vida ao olho do falcão, o cão que tem fome, o menino a quem lhe dói a barriga. Isso são urgências, emergências. Nunca mais me dirão: faz, é urgente. Nada é urgente quando não há tempo delimitado e hoje um dos meus calendários fechou-se. Não me venham com urgências e exigências, não abusem da palavra ao desbarato. Uma urgência é um caso de vida ou de morte. Sejam mais literais. Da próxima vez que ouvir: é urgente, replicarei com apenas os coelhos, os ratos, os meninos e os velhos têm urgência. Nós temos tempo. Todo o tempo do mundo para fazermos aquilo que fazemos da melhor forma que o sabemos. E agora, vou ver se chove.

domingo, 18 de maio de 2014

Primavera

Há dias em que até tenho medo de ir lá fora, deitar-me ao vento e aos pássaros e ao aroma psicotrópico de exala o jasmim, a madressilva e o maracujá. São dias perigosos de coração sem rédeas que se deixa ir. Experimento. Se não me mexer estou a salvo. Deito-me no baloiço, fecho os olhos e tento abstrair-me pelo som do vento, os badalos das ovelhas e o frenesi sexual da passarada. Sim, eu sei, os sons aqui são sempre iguais, o que muda é o ouvido de quem os ouve. Há dias em que quase não se ouve nada e há outros, como este, que há uma orquestra lá fora. O meu coração a trote do pensamento que se mistura com um aperto bom no coração, uma bola que sufoca a garganta e um nervoso infantil de apaixonados. Como dizia o outro, o amor é mesmo fodido. Vem e volta, sempre igual, tenhas doze anos ou setenta. Pelo menos, na cabeça. É daqui que o meu hoje não vai sair. Assim tenha rédeas nesta natureza que desperta.

sábado, 17 de maio de 2014

No primeiro beijo, as bocas engolem-se

No primeiro beijo, por muito romântica que seja a imagem de dois lábios que se tocam, as bocas engolem-se. O primeiro beijo anuncia o que vem de seguida e resume o que se passou antes: dois corpos indistintos e dois corações ansiosos.
Lembro-me do nosso primeiro beijo.
Demorou algum tempo a acontecer, não por falta de atrevimento meu, mas por medo. E se não gostasses? E se a vontade de um beijo fosse só do meu cérebro toldado pela paixão? Tanto medo e nós já adultos, vidas anteriores, filhos, e o medo de um beijo que já havíamos dado com os olhos e com o corpo.
E o beijo chegou, 350 quilómetros depois do início da viagem, a minha mão a colocar a terceira mudança no carro para tocar na tua, na recepção de um hotel numa terra estranha, quente, insuportavelmente quente.
E nessa recepção era como se ninguém existisse. O beijo que surge quando se firma uma assinatura no quarto, um acordo pré-nupcial da minha permanência em ti. Duas bocas que se engoliram, dois corpos colados, fora do tempo e do espaço, dois espanhóis a saborear um bagaço intragável e o beijo que tinha dentro trinta outros beijos que tinham ficado por dar. Nunca mais perdemos tempo.

Inspiração

Há coisas sobre as quais ainda não consegues escrever e resta a dúvida se um dia conseguirás. Talvez haja coisas que nunca podem ser escritas e que se infiltram em buracos e túneis e ficam presas à parede do coração como limo nas rochas da praia. Se me perguntares se as queria escrever, hoje já não sei. Certeza única de que ter algo para escrever e não conseguir é como um doce com que se acena a uma criança. Dá vontade de continuar, rondar, andar às voltas e só dar só uma chupadela para não acabar. Há coisas que custam muito a mover do coração para a cabeça, e agora, talvez mereçam ter apenas o papel que lhes reservei - ingredientes bons e maus do que me tornei.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Pânico

É preciso escrever, escrever, escrever, muito, muito rápido, e tentar acompanhar a sensação - de onde vem a sensação? A cabeça e o coração a disputar protagonismos, como se tivesse alguma importância este momento que se vive aqui em mim a muitos quilómetros por hora. Calem-se todos, deixem-me ouvir o que o corpo diz e não me atrapalham que o tempo não se pode perder e eu tenho de sentir, sentir muito, pensar na sensação, deixá-la sair do coração e resgatá-la no cérebro de onde nunca devia ter saído. Estás a sentir o calor que vem do peito, autêntico sol a pôr-se e para onde é perigoso olhar? E a barriga a contorcer-se? Estás prestes a ter um filho que não é mais do que uma invenção do cérebro, enterra-o lá. E os dentes que se cravam na língua e nas paredes da boca e rangem, rangem até fazer sangue? Usa-os para comer. Diz ao teu trapaceiro amigo cérebro que tens a lição bem estudada e que sabes por que razão as coisas têm uma função. O coração acelera-se e estende o raio de acção. Bate no peito, na virilha, no olho, tum, tum, tum, não sai de dentro dos teus ouvidos. Que venha alguém com uma mão secular e o arranque com força e rapidez. Não tenho espaço para um coração tão grande. O cérebro quase a ganhar-me e eu quase a deixar-me ir, derrotada, peço tréguas e proclamo-o dono e senhor deste corpo no limite, desgastado, corroído, suplicante. Nada que um calmante não resolva, penso. Penso eu ou sugere ele? Ponho em prática o que aprendi em anos de análise, tento relaxar e ver de fora, sentir e ser outra a explicar o que sinto a quem só se interessa por fenómenos químicos, com o pormenor de um legista que explica aos alunos onde começa um órgão e acaba outro. Isto passa. Passa sempre. Tu sabes. Sei? 

Planar

Neste final de tarde cujas cores convidam à melancolia, olho para o céu e vejo-te seguro, a planar, sem um bater de asas, assim minutos a fio, atento. E era assim que gostava de estar hoje, no céu, imóvel, a deixar-me levar pelas massas de ar quente e ar frio e, se não fosse pedir muito, que esse ar me entrasse pelo cérebro e o levasse para longe, no céu, vazia, a planar sem qualquer objectivo. Enquanto penso isto, do meu lado direito, um par de andorinhas pousadas no beiral ensaiam passos de amor, enquanto comem os insectos que desgraçados lhes caem no caminho dos bicos, máquinas automatizadas de alimentar crias. Ela olha para o lado, engole um insecto, coça o peito e ele aproveita essa distracção de um centésimo de segundo e voa-lhe para cima com grande alarido. As andorinhas não planam como um falcão. Ambos lutam pela sobrevivência, mas hoje uns tentam procriar e os outros procuram um qualquer bicho distraído que seja o jantar. Eu revejo-me em todos. Há dias que até desconfio que as galinhas são mais inteligentes do que eu e que este meu modo de ver só prejudica, um fardo que custa carregar e me impede de planar quando desejo. 

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Maio do meu contentamento

Maio, um nome perfeito para um mês perfeito, o meu preferido, o dos exageros, o das calmarias, o das flores e dos casamentos, o das noites longas e dos pés descalços, aquele que é sorvido, de 1 a 31, como se não existissem outros 11 meses.
Maio cheira a criança.
A primeira coisa que me vem à cabeça, quando penso em Maio, é o aniversário do meu irmão, casa cheia de gente, vestidos curtos, alças que se descosem. A segunda é o aniversário de casamento de meus pais, as festas íntimas, as piadas marotas, os presentes que as filhas escolhem.
Maio é o mês dos amores, perfeitos, imperfeitos, de curta ou longa duração, mas aqueles amores que chegam e abanam, como se fosse para morrer. Acho que é da luz. Depois da escuridão e da chuva e do frio, algo desperta em nós, e na natureza, de forma bruta: rápida e urgente. 
Em Maio revelam-se os corpos, e os cheiros e as modas, os morangos e as cerejas, e os braços nus que à noite se arrepiam. Noites em claro, madrugadas de amor, manhãs briseiras, multas nos carros esquecidos nas ruas pela urgência. Em Maio, todos devíamos ter desculpa para fazer loucuras. Há muitos meses para expiar a culpa. Este, não.