terça-feira, 1 de novembro de 2016

Mudança de endereço

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segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Era uma casa

Durante muito tempo mantive a convicção de que não conseguiria escrever sobre aquela casa.
Foi assim que a reencontrei: abandonada, sem palavras, sem seiva, seca, destruída, amarfanhada como uma coisa que se enfia no bolso para esconder e que se esquece e lá permanece a ganhar mofo. Carcomida por ervas daninhas e pela vida inacabada de alguém.
Na bancada, ovos de variados tamanhos, um saco com os últimos figos da estação e uma galinha arranjada e pronta a cozinhar ofertas dos vizinhos que me enxugam as lágrimas e me incentivam a fazer tudo de novo.
Agora, que já senti a terra entre os dedos, que acordo com vontade de ouvir aquilo que só aqui se ouve àquela hora, sei que aqui é o meu lugar, e que aqui farei crescer novas raízes que me vão dar sombra, quando o sol é demasiadamente quente para suportar, ou abrigo, quando for preciso resguardar-me da chuva.
Que comecem os trabalhos e os dias na (tão) nossa casa.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Este menino não tem jeito, não

Hoje uma pequena megera insultou meu trabalho. Como era mulher, ouvi e não respondi. Não queria que me tomasse por um machista retrógrado e a mandasse ser bem fodida. É que todos os que me conhecem sabem que não há nenhuma linha estanque que separe o meu "eu" daquilo que faço, e que, aliás, não tem interesse nenhum para a felicidade da humanidade. Logo, ela estava me insultando a mim. Lembrei do episódio da vagina dentata, do Ruben, e me imaginei enfiando um grande osso buco na boceta da megera. Ela era bem capaz de desfazer um osso em pó apenas com o sexo. Senti repulsa dos meus pensamentos e uma vontade de abandonar a cadeira e ir ver o mar, fazer festas a um cão sarnento e vagabundo, sorrir a uma criança ou amparar um velho. Essas coisas que há cada vez menos pessoas fazendo, porque a humanidade se tornou mesmo inútil, e eu fico assim, sem resposta, quando um ser com uma boceta me humilha. Dá vontade mesmo de pegar em toda a raiva e transformar todo o sentimento em amor bobo: abrir a janela que dá para a favela como se saísse de dias de escuridão, ou ter até o privilégio de baixar à rua para ver se tem carta. Mas ninguém me escreve. Nem contas para pagar às quais pudesse responder e ensaiar uma prosa. Puta que pariu. Eu que só quis coisas boas para minha vida, um bom emprego, uma mulher para gastar cafunés, um par de filhos rodando bola, rodando à minha volta, me chamando papai. E hoje aqui estou: sozinho, fumando beatas para pegar no sono, olhando a lua e fazendo planos.
A mina quase ia estragando o meu dia até que o sono baixou e eu sonhei que estava deitado num vasto campo verde e macio, embalado pela brisa, ouvindo as histórias divertidas que a vovó contava sobre as doenças que se apanhavam nas roças. Eu rindo, vovó rindo de mim, moleque, dizendo 'este menino não tem jeito, não'. E não é que ela estava certa? Saudades de você, vovó, e do seu cheiro a panela, dos seus carinhos, do seu aconchego. Saudades de um tempo que teimo não sejam apenas memórias. Amanhã mesmo mando a mina tomar no cu. Quero ser eu mesmo, procurar um rumo, uma vida comum, meio igual ao do sujeito que toma café no boteco da praça. Um inútil feliz. Mas tremendamente feliz.

sábado, 20 de agosto de 2016

As expectativas

Lá ao fundo, cantas os "homens Temporariamente Sós", dos GNR. Antes, em confidências ébrias me dizias que ninguém como eu escrevia em Portugal. Agradeço-te o carinho, o amor. Queria muito estar à altura da tua convicção, emocionar-te como sei não ser possível, ao menos captar-te a benevolência para tal conquista. Sei que estamos longe, entre o que um pensa e o outro sente, mas sabendo-te por aí, toda eu regozijo em verborreia. Meu amor.

sábado, 7 de maio de 2016

Alice

Todas as semanas, o mesmo ritual. Alice saía de casa ao sábado, pontualmente às 13h36, alheia à meteorologia, aliás, como a todas as coisas que a ciência explica. O casaco dava para tudo: se fizesse frio, aconchegava, se o calor se tornasse insuportável podia guardá-lo na cadeira do lado. Não costumava haver ninguém nas cadeiras das piscinas municipais depois das treze. Chegava ao complexo desportivo e sentava-se, à espera da próxima aula, num nervoso miudinho como se fosse sempre a primeira vez. Não sabia o que era um hábito ou uma rotina, sabia apenas que era tudo igual; que no fim não saberia mais, nem menos, mas durante esses 45 minutos semanais podia efabular sobre o seu objecto de desejo, ali vulnerável, de calção de licra, na cabeça a touca e óculos por colocar. Mal a porta dos balneários abria, Alice contorcia-se para conseguir ver através da janela embaciada se o perfil aparecia. Já era a décima sexta semana, e nunca tinha deixado de aparecer. Nesse momento, esquecia-se de tudo, de quem era, de onde morava, do que tinha de ir comprar a seguir ao Lidl. Durante o tempo da aula de natação, ali sentada na cadeira onde os pais se riem com as gracinhas dos filhos que aprendem a dar os primeiros mergulhos, Alice tinha um tempo e um modo só seu. Seu e dele. Todos os sábados, às 14 horas em ponto, ele, passos de soldado, ao entrar na piscina, levantava a cabeça e siderava os olhos nela. E ela não podia fazer, nem queria, o estômago apertava-se em espasmos, mas as duas órbitas estacavam na mesma direcção, indiferentes a olhares alheios que, todavia, nunca existiam.
E lá ficava ela a vê-lo na piscina, a obedecer a todas as instruções do professor como se fossem ordens para um soldado, executando cada movimento com uma precisão e contenção maníacas, sem necessidade aparente de descansar para recuperar o fôlego.
Alice via-lhe as formas. Por trás, umas costas em V, um rabo duro e grande, musculado. Pela frente, abdominais definidos e uns pêlos aqui e ali. Estaria no fim da adolescência. Teria a idade do filho que nunca teve. Aliás, quando o médico lhe perguntou que interesse lhe despertara o rapaz, Alice não soube responder. Não era nada de mal, respondia, era uma coisa que não conseguia explicar, uma espécie de coisa que a puxava para ele, como se fosse íman, percebe doutor? Como se fôssemos parte de um só, só que eu não sei nadar e ele sabe. Tão bem, doutor, precisava vê-lo, todo direitinho, parece aqueles nadadores profissionais que aparecem na televisão como cometas. Está a ver?
Alice permanecia sentada na cadeira com as pernas muito juntas e as costas debruçadas sobre as pernas para conseguir ver os quatro cantos da piscina infantil. Não era difícil vê-lo no meio das crianças que pulavam e gritavam e se divertiam indiferentes às ordens do professor que ele cumpria com eficácia. Hoje, pela primeira vez, reparara na barriga incipiente de uma menina, daquelas barrigas que vão ficando nas crianças. Esta é das gordinhas, pensou.
Dá-me licença?
Quase salta da cadeira como se as janelas se tivessem aberto e iluminado o quarto onde dormia na completa escuridão.
Claro.
Tira o casaco da cadeira para dar lugar a um casal que se senta animadamente. Frases soltas. Vê-se que são pais de uma daquelas crianças. Gabam, orgulhosos, as tentativas de braçadas.
E aquele ali? Achas que é o professor?
Não. O professor é aquele. Está lá fora... Mas sim, o que é que aquele está ali a fazer?
Alice desconcentra-se. Tem vontade de pegar no casaco e no saco de plástico e sair dali. Já não está sozinha. Não consegue pensar. Mas e ele? O quão triste e desiludido vai ficar quando a aula terminar, olhar para cima e não a vir?
Alice repara que a mulher também não tira os olhos dele. Começa a ficar irritada com aquele ataque à privacidade dos dois. Isto sou eu a dizer. Alice não sabe dar nome ao que sente. Só sabe que é mau.
Muito estranho. Já viste como ele faz os movimentos? Está no tanque de aprendizagem! Achas que aquele marmanjo não sabe nadar? Tem um corpo tão estranho! Junto às crianças... Temos de ver isto na secretaria. Não é normal.
Espero que um dia quando for aprender a nadar não me ponham na piscina das crianças, olha a vergonha...
(...)
Ele não está a aprender a nadar; ele é atrasado mental.
Ah, pois é. Fala baixo. Pode ter aqui os pais a ouvir.
Alice levanta-se, maquinalmente, abre a pesada porta de vidro. Veste o casaco apesar de sentir fogo por dentro. Fogo que nenhuma água vai apagar, porque há anos que não consegue chorar.