quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Dar à luz

Estou com um nervoso miudinho. Amanhã vou ser mãe pela primeira vez. Costumo ser mãe duas vezes por ano, por volta das férias grandes e nas férias de Natal. E custa-me sempre como se fosse a vez inicial: os nervos, os medos e receios de um ser estranho, a vontade de fechar a vida e o mundo naqueles infindáveis abraços e beijos e cheiros de cabeças. Amanhã recebo um filho durante três semanas e, nestes poucos dias, tento fazer com que durem anos: ele chega bebé, aninha-se, pede e deseja como uma criança, depois cresce e farta-se, afasta-se, vai à vida dele. E nesse momento de despedida passaram 19 anos, três semanas, e eu sinto sempre: deixa-o ir à vida dele, recusa-te prostrar-te que não foi à guerra e daqui por seis meses ele renasce e volta ao teu colo.
O medo? E se ele não gostar de mim? Como aterra um ser que já desconheço no meio da vida que sempre correu sem ele - como pode correr? Posso pará-la? Como prolongar o tempo? São três semanas que medeiam o nascimento e a vida adulta. E vai haver choro e cólicas, e gargalhadas e acusações, escárnios adolescentes e discussões de política, e vai haver o final "o que me importa, filho, é que sejas feliz". Como aguentar esta bipolaridade temporal? Como parar o tempo e não pensar que o dia em que o abraço dita o dia em que me despeço?
Amanhã vou dar à luz pela segunda vez no ano e tenho o ninho preparado: a cama mais quente, as comidas preferidas, o mimo irracional, o foco das minhas atenções. Pelo menos, durante as próximas três semanas, vou amá-lo como quem vê uma semente que cresce, um broto que se distingue para um dos lados, um fruto que amadurece e é levado por um pássaro. Meu filho, sê bem-vindo a este mundo.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Os picos da serra

Enquanto é possível ver o pico da serra, sento-me ali no banquinho de pedra a ver se chegas. Dali consigo avistar uma parte do caminho da entrada até à garagem. Ouvem-se duas gralhas e uma gaivota que deve estar perdida e os olhos também se confundem com a ambiguidade da pouca luz desta tarde. Parece que oiço o motor do teu carro enferrujado pela estrada de terra batida, mas não és tu quem chega. Quantos carros desses haverá por aqui?
A árvore maior que se destaca como aquelas rapariguinhas altas e desengonçadas que havia na escola, mochilinha às costas, soquete até ao joelho. O que diz ela que me confunde?
Deixo de ver o pico novamente e o vento volta a soprar com mais força. Vem aí chuva. Quem me dera fosse diluviosa que limpasse tudo, mas só depois de chegares, amor. Que a água limpe tudo e nós possamos, depois de abraçados um ao outro, acordar outra vez para um dia novo, com luz que fere os olhos, mãos rodopiando entre as cinturas, uma outra estrada para percorrer.
Vem depressa. Está a chover e estou farta de estar sozinha.

domingo, 27 de setembro de 2015

Ela disse: "vou ali comprar tabaco, aproveito e deixo o lixo no caixote, apanho um bocado de ar fresco e isto passa". Mas estava a relativizar apenas para não dar importância àquilo que, de facto, nenhuma importância tem, e são chamados "os estados de alma".
Abandonou o jardim e fechou o portão. Olhou para trás. Havia uma casa com uma chaminé quase fumegante e a luz, lusco-fusco, dava para perceber que nas paredes havia estantes com livros e um vulto passava entre as divisões.
Encaminhou-se para a serra. A estrada batida apenas se sentia nos sapatos desadequados. Andou com os ouvidos despertos, a lua, gigante, a acompanhá-la. Uma brisa que já enregelava a cara e a ponta do nariz. Ouvia-se a coruja, lá longe, e muitas vezes se voltou para perceber se os sons que vinham das silvas a mover-se seriam algum animal perdido, como ela. Procurava uma clareira onde, finalmente, pudesse sentar-se, pinheiros em volta e a luz da lua e o seu silêncio complacente.
Ali, sentada num troco, havia de fechar os olhos. Quase se ouvia respirar. As noites continuam a ser longas e as clareiras inabitadas são precariamente seguras. O precário na noite é tudo o que temos.
Há anos que tinha este hábito de fugir de casa à noite, quando tudo é respiração, e lá longe se ouve um cão a uivar ou uma escaramuça de gatos. As casas habitadas estão cheias de demónios que impedem o sono de se aquietar.
Levava a almofada para a praia, para o campo da bola, para qualquer local amplo e sem vestígios da presença humana. Aí, embalada pela lua e pelos sons da noite, deixava que a natureza fizesse aquilo que lhe fazia tão bem, embalá-la, acalmá-la, abraçá-la num sono leve, mas que, ao contrário de tudo o resto, tinha existência de facto.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A tua vida é uma bela merda? Tens de conhecer a Cici

Lá está ela, ali, num canto, olhar justiceiro, como aquelas amigas que gostam de ti, mas reprovam a maioria das coisas que fazes. Tenho a certeza que podia mudar a minha vida. Deixaria de fumar e beber, passaria a ter uma alimentação saudável, a levar mais vezes a cadela à rua, a correr que nem uma louca com um colete reflector por essa serra fora. Mas estarei eu preparada para a mudança que ali, naquele canto, existe em potência?
Estou há uma semana sem saber o que fazer. Se começar a relacionar-me com ela, talvez nada volte a ser como dantes, e é disso que tenho medo. Oiço as promessas que cumpriu: mudou a vida de tanta gente, de umas é braço direito e esquerdo, de outras é uma companhia, de outras ainda é tudo, a dona de casa que eu gostaria de ser. Gostaria?
Só a minha mãe para infiltrar na minha própria casa esta agente do KGB. Esta coisa que me deixa insegura e envergonhada de cada vez que abro uma lata de sardinhas ou atum ao almoço. Porque lá está, inerte, sem palavras, com o seu olhar reprovador. Agora, aos 38 anos, é que me tinha de acontecer isto... Não sei como reagir. Não sei como é que ela vai lidar com a minha inexperiência, a minha falta de paciência, os meus palavrões. E se vem da minha mãe, todos os cuidados são poucos, pelo que, a primeira medida que tomei foi ler tudo sobre o assunto. Há gajos especialistas na teoria de Heisenberg, eu sei tudo sobre a Cici. Assim mesmo, com "c". Eu tenho uma Cici, sei tudo sobre ela, mas não consigo, não sei se quero iniciar um relacionamento nesta fase da minha vida. Pior do que tê-la ali, vegetativa, é usá-la só às vezes, como um amante que se veste a seguir e dá dinheiro para o táxi.
Sabiam que há tratados sobre a Cici? E que a Cici não é pior do que a Bimby ou a Yammy? A Cici não é pior, nem é melhor. A Cici é diferente, começando pelo nome. A Cici tem várias lâminas, e até tem uma que corta e outra que tritura, e eu não percebo qual a diferença entre as duas, mas teno a sensação que deve ser bom ter duas lâminas diferentes para triturar e picar. A Cici é muito melhor do que eu, porque ela sabe a diferença entre os dois processos, e, pelo que li na net, é uma diferença muito importante.
A minha mãe ligou hoje. "Já estreaste a Cici?" "O Vítor gosta da Cici'?". Eu começo a ter medo da Cici, essa agente infiltrada e perfeita que jaz, vegetal, na bancada da cozinha.
Eu sei que a Cici é gaja para mudar a minha vida, mas, bolas, com esta idade? Acho que vou deixá-la ali e contra ela arquitectar um plano para quando o meu marido por ela se apaixonar. "Ai, a Cici... olha, podes ir para a cama com a Cici, mas tens de mudar a lâmina primeiro, não te vá capar as miudezas. E aproveita e pede à Cici para ir pôr o lixo na rua e levar a cadela a passear. Tenho a certeza de ela é capaz".
Hoje percebo aquela discussão pífia sobre se os robôs nos vão roubar os empregos. É que esta não fala, mas é como se falasse. E o olhar? Fulmina-me.


segunda-feira, 8 de junho de 2015

Reaprender

Reaprendo a dormir, a ouvir a minha própria respiração, a perceber a profundidade de um sorriso, o alcance das palavras que dizes ao meu ouvido. Devia ser proibido tirar uns dias de férias. Será que vou reaprender a fazer tudo a tempo, antes de acabarem?
O lençol de algodão ainda está quente da noite. Que importa? A porta para o terraço abre-se de nesga, para deixar a brisa passar e os corpos quase se arrepiam. Experimento muitas posições de preguiça diferentes e acabo espojada, diagonal à cama, pernas semiabertas ao sabor da corrente de ar, braços que apertam a almofada. Escondo a cabeça na tua. Estou com muita preguiça e só quero ter um sentido acordado, só quero ouvir o vento que passa nas árvores, os passaritos que se resguardam nas árvores, como eu aqui, lá ao fundo oiço-te a escrever, lá ao longe.
Deixem-me ficar aqui neste estado vegetativo, vergonhosa e preguiçosamente felino, a sonhar com tudo aquilo que poderia fazer e não me apetece sem ser mergulhar na minha própria respiração, cabeça imersa no cheiro da tua almofada, a descobrir em mim mais uma existência.
Sozinha, hei-de mergulhar na água quase morna e que cheira a eucaliptos, um ror de pressas a muitos quilómetros, mais uma certeza apreendida neste quase desdém: existo.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Piggy

De cada vez que olho para os pequenos felizes a chapinhar na água, lembro-me de ti com realismo. Naquele tempo em que uma maré vaza significava quilómetros para uma criança alcançar a água e havia pequenos lagos cheios de crianças nos quais preferíamos que não me banhasse. A água está choca. Iamos, assim, até à beira-mar, onde a água enrijece os músculos, de mãos dadas. Tu num casaco de fato de treino que hoje estaria na moda, mais de cinquenta anos a separar-nos, meu lobo do mar de pele e osso. Estacavas as pernas secas na água, canelas cheias do negrume do sol, calças arregaçadas - mal - e eu prendia-me a esses mastros, um de cada vez, e deixava-me ir ao sabor da corrente. Onda que vem, corpo a baloiçar para a praia, onda que vai, corpo a fugir para o mar alto. Podíamos ficar horas assim. Tu embevecido com um avanço meu, a medo, eu segura a ti, como sempre estive. Trinta anos depois de ter percebido que já só eras um fato branco pendurado no roupeiro, descontextualizado, sozinho, continuo a ter-te como o meu pilar, onde recorro  quando a maré está brava, e onde sorrio quando me deixo simplesmente levar pela água.

segunda-feira, 30 de março de 2015

O trapézio

Dói-me o trapézio de estar ao computador a escrever só com uma mão. É aquilo a que os velhos chamam uma moinha que irradia do fundo do pescoço para os ombros. E nem hoje tenho direito ao meu silêncio. Estou aqui, fechada na cozinha à tua espera, a escrever, e lá em cima reina grande galhofeira. Eu já só peço que não abram cabeças nem lábios nem partam os dentes da frente. De resto, deixá-los divertirem-se no escuro, a desafiar-me, eu que hoje não sou juiz de ninguém, nem meu, nem do gato que bufa com o cio, entre o jardim e a estrada e nos desorienta a concentração.
Há um copo de bom vinho, um almoço que foi feito ao jantar, para amanhã, e um jantar que entretanto esqueci que seria preciso fazer. Tão pouco tempo para tanto que se passa hoje, por aqui. Tantas memórias que entram e zarpam a mil para serem sucedidas por outras ainda mais longínquas trazidas por este cd que me deixaste. Eu, o Telmo, a Lisete, o Nuno, o Vasco e o Ildefonso, se chegasse a tempo, num quarto de uma casa igual a todas as outras a abanar o capacete, nas t-shirts brancas e camisas de flanela abertas, nos all star rotos e sujos com aquele cheiro a borracha queimada. Seria? Não me lembro sobre o que conversaríamos, sei que o fazíamos, ou então ficávamos em silêncio a ouvir o kurt gritar como hoje gritei ao volante do meu pequeno-burguês automóvel, no túnel do Marquês, luzes apagadas, volume no máximo, uma tremenda e alegre vontade de fazer aquilo que não é suposto. Hoje tive outra vez 14 anos, e tu não me conhecerias, como ainda hoje estranhas quando me vês abanar os cabelos em vez das ancas. As ancas cresceram a pensar em ti. O kurt haveria de compreender. O Telmo, o Vasco, o Nuno e o Ildefonso estranhariam, mas depois entranhariam. A Lisete imitaria, como qualquer fêmea.
Lá em cima, dois meninos desafiam a autoridade. "Grandma, take me home, Grandma take me home!".

segunda-feira, 2 de março de 2015

O Marques sem filosofia

Nunca vi o meu pai ser temperamental no mau sentido, com excepção de quando falava no Marques, o dono dos penhores para onde foi trabalhar depois de terminar a quarta classe e que lhe exigiu a compra de um par de sapatos para atravessar o Tejo. O Marques foi a primeira referência do que um patrão seria. Quando o pai chegava a casa, a pé, cansado de números e de contas e de histórias bafientas e prazos que secretamente anunciava aos clientes, o telefone tocava. Era o Marques. "O que é que esse gajo quer?". "Ó homem, claro que tranquei a porta. Sim, tranquei a montra também. Quer ir lá, vá lá você". O Marques era o meu pai a tratar alguém por "você". O Marques era um cabrão que atazanava a vida do meu pai durante o dia, mas também durante as horas em que supostamente deveria estar com a família. Sempre odiei os Marques com quem me cruzei.
O Marques tinha filhos que não queriam saber das histórias tristes de quem penhorava toalhas de linho, salvas de prata, libras de ouro. O meu pai, sabia o Marques, contactava todos os clientes quando o prazo para a penhora se aproximava. O Marques ficava fulo. O Marques lidava secretamente com esta falta aberta de fidelidade e utilizava-a para atazanar o miúdo que lhe granjeou fortuna dos 10 aos 60 anos. É muito tempo a lidar com o Marques. Mas o Marques também tinha um lado bom. Deixava o meu pai trazer as ameixas amarelas, ao abandono, que se acumulavam no quintal por onde entraram os ladrões e levaram tudo o que havia de mais brilhante. Tudo o que eu menos gostava. Eu gostava era dos anjos gordos de marfim, eu gostava de tudo o que era realmente velho e bafiento, eu gostava de poder ter ouvido a história de todos aqueles objectos que produziam tristeza e asco no meu pai. Como é possível encantarmo-nos por uma história que acabou em tristeza, ali, abandonada, nas prateleiras bafientas da loja de penhores do Marques? Aquele da loja de esquina, cujo chão rangia e a casa de banho era tão imunda que não me era permitida passagem?
"Como é que podes ser assim? Conheces o homem há quase tanto tempo como conheces o teu pai!", dizia a mãe. "Aquilo não é um homem, é um escroque. Podemos falar de outra coisa?"
Quando o Marques morreu, o meu pai não foi ao funeral. Quando o Marques morreu, a loja foi comprada por uns doutores que logo a mudaram para as avenidas novas. Na segunda semana, satisfeito com o respeito que lhe era devido pelos novos donos, o meu pai foi assaltado e brutalizado. Nunca mais foi trabalhar. Mas os novos donos ofereceram-lhe um relógio tal e qual o que lhe roubaram nessa tarde fatídica. O Marques haveria de pedir-lhe o balanço. O Marques, sem filosofia, era um verdadeiro prestamista. Raios partam os Marques deste mundo.

Fazer crescer coisas

Há quanto tempo não escreves? Há quanto tempo não te nasce das mãos um vestido, uma alface que rebenta a dureza da terra? Há quanto tempo nada cresce dentro de ti? De ti? Que luto é este? Que luta é esta, que não é tua? Há quanto tempo não sorris com o corpo todo por causa de um raio de sol, de uma onda que te molha o pé, de um menino que salta para o teu colo? Há demasiado tempo. As mãos estão perras, o útero vai secando, o sorriso deixa marcas. Mas tudo se reaprende, tudo há-de sair com a pressa e o destreino de um bebé que se precipita. Mais uma vez. E nesse dia, há-de haver festa na minha aldeia. Com direito a foguetes, a fanfarra, a pés descalços rodopiantes, a beijos roubados e a olhares que prometem, a medo, o que não se sabe se tem. É o sabor a vida.