quinta-feira, 31 de julho de 2014

Na tua partida

No dia em que o meu filho se vai embora deste país acordei com um torcicolo bravo. Mais forte o desejaria se me permitisse escrever isto com sotaque brasileiro, um mergulho no coração, uma leveza de anca, chora que ri, ri que chora. 
No dia em que o meu filho se vai embora deste país eu queria espremê-lo novamente entre as pernas, cheirar-lhe o cucuruto, limpar-lhe o cocó do rabo e enchê-lo de cremes caros, daqueles que cheiram a pasta de fígado de bacalhau e deixam memórias nos dedos.
No dia em que o meu filho se vai embora deste país eu queria dar-lhe uma lição de história, sem ser envergonhada, falar-lhe dos feitos quotidianos da família que lhe dá nome, deste país que sorri e se encolhe de vergonha a seguir.
No dia em que o meu filho se vai embora eu queria dizer-lhe que se orgulhasse de mim e do pai, que nos amámos às escondidas e o fizemos com vontade e orgulho, tanto quanto como nos separámos e o colocámos num pedestal intocável. O teu pai terá muito orgulho em ti, filho. Eu sei.
No dia em que o meu filho se vai embora deste país eu queria dizer-lhe que fosse honesto, grato, amigo do seu amigo, sonhador, realista, sem limites. O mundo é teu, consoante o que fizeres com a tua vida. Não guardes rancores e amores, as palavras foram feitas para serem ditas e os sentimentos para serem sentidos. Não acredites em fins, nem em buracos negros, são só uma questão de perspectiva. Os nossos deuses seguram-nos e, no fim da linha, há sempre uma luz. 
No dia em que o meu filho vai deixar este país quero dizer-lhe que aos 17 o mundo é nosso, mesmo que pareça estupidamente inalcançável como o sonhámos, que um par de cuecas e um livro fazem mais por nós do que as burocracias com hora marcada e os acontecimentos previsíveis.
No dia em que tu, meu filho, vais deixar este país, quero que te lembres que há um território ao qual pertencerás para sempre, que te acolhe na presença e na absência, nas palavras e no silêncio, no riso e no choro, e esse território, o nosso coração, é nosso, e só nós instituiremos os seus desígnios. Por favor, sê feliz.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Quando era pequenina, questionava-me sobre se deus ouviria as minhas preces sem som, se deus seria capaz de ouvir o que dizia e pedia em silêncio. Hoje voltei a pensar nisso e dei por mim a achar puerilmente ou felizmente que sim. Deus ouve os meus pensamentos e os meus desejos. Deus e os meus pequenos deuses. Largada nestes pensamentos obtusos, reparo, neste fim de tarde asfixiante, no homem velho e tisnado que fala francês com o neto-filho, no jardim da casa que ele próprio ergueu com as mãos e anos de trabalho em França. É francês. Já falaram sobre a morte, agora falam sobre a presidência da Europa. Ele, o pequeno francês, dá toques na bola, o velho português aproveita a brisa para se enfiar no túnel de terra que tem vindo a escavar e que levará água a casa e às amoras que diariamente nos oferece. É feliz. Sabe que só voltará definitivamente a Portugal para morrer. Que conversas terá ele tido com deus?