Como é que eu te posso dizer isto sem que te desencantes comigo? Eu já não reconheço esse brilho, esse sorriso. Aliás, reconheço, mas não como eu. Alguém mo roubou. Por esse sorriso já passaram perdas, traições, fome, actos que me condenariam ao pelourinho. Eu já passei por muito. Todos nós, dizes, eu gosto de ti como és. Eu sei.
Mas hoje quero dizer-te que já senti no peito o aperto de perder um grande amor esbarrado contra uma árvore, que já traí, que já fui traída, que já fiz com o corpo e com o coração muitas coisas de que me envergonho, já me humilhei, já fui humilhada, já desejei a morte de alguém, já me deixei morrer, já esqueci esse sorriso.
Mas quando sorris, é como se nada tivesse passado. Vejo uma criança.
Sim, mas há momentos em que tudo o que te confesso hoje me aparece em segundos, me reduz o coração a um aperto e me acelera a respiração. Parece que não é verdade. Mas depois vem um sonho e outro, e um corpo suado e aflito: eu matei alguém? O que é que eu fiz de mal esta noite?
Depois abraças-me, mas já não consigo silenciar e sai tudo confuso, rápido, parece que desprovido de sentimentos. Comia papas e um bacalhau no forno no fim do mês. O resto era moedas com que comprava uma carcaça fresca, uma ida ao trabalho de meu pai na esperança de que me convidasse para almoçar. O silêncio imóvel de uma cama esburacada onde fingia estar a dormir e onde vinham e se serviam. Uma lágrima que secou e que nunca mais voltará a cair.
Esquece tudo o que te disse. Assim também eu finjo que nunca aconteceu.
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