Nunca vi o meu pai ser temperamental no mau sentido, com excepção de quando falava no Marques, o dono dos penhores para onde foi trabalhar depois de terminar a quarta classe e que lhe exigiu a compra de um par de sapatos para atravessar o Tejo. O Marques foi a primeira referência do que um patrão seria. Quando o pai chegava a casa, a pé, cansado de números e de contas e de histórias bafientas e prazos que secretamente anunciava aos clientes, o telefone tocava. Era o Marques. "O que é que esse gajo quer?". "Ó homem, claro que tranquei a porta. Sim, tranquei a montra também. Quer ir lá, vá lá você". O Marques era o meu pai a tratar alguém por "você". O Marques era um cabrão que atazanava a vida do meu pai durante o dia, mas também durante as horas em que supostamente deveria estar com a família. Sempre odiei os Marques com quem me cruzei.
O Marques tinha filhos que não queriam saber das histórias tristes de quem penhorava toalhas de linho, salvas de prata, libras de ouro. O meu pai, sabia o Marques, contactava todos os clientes quando o prazo para a penhora se aproximava. O Marques ficava fulo. O Marques lidava secretamente com esta falta aberta de fidelidade e utilizava-a para atazanar o miúdo que lhe granjeou fortuna dos 10 aos 60 anos. É muito tempo a lidar com o Marques. Mas o Marques também tinha um lado bom. Deixava o meu pai trazer as ameixas amarelas, ao abandono, que se acumulavam no quintal por onde entraram os ladrões e levaram tudo o que havia de mais brilhante. Tudo o que eu menos gostava. Eu gostava era dos anjos gordos de marfim, eu gostava de tudo o que era realmente velho e bafiento, eu gostava de poder ter ouvido a história de todos aqueles objectos que produziam tristeza e asco no meu pai. Como é possível encantarmo-nos por uma história que acabou em tristeza, ali, abandonada, nas prateleiras bafientas da loja de penhores do Marques? Aquele da loja de esquina, cujo chão rangia e a casa de banho era tão imunda que não me era permitida passagem?
"Como é que podes ser assim? Conheces o homem há quase tanto tempo como conheces o teu pai!", dizia a mãe. "Aquilo não é um homem, é um escroque. Podemos falar de outra coisa?"
Quando o Marques morreu, o meu pai não foi ao funeral. Quando o Marques morreu, a loja foi comprada por uns doutores que logo a mudaram para as avenidas novas. Na segunda semana, satisfeito com o respeito que lhe era devido pelos novos donos, o meu pai foi assaltado e brutalizado. Nunca mais foi trabalhar. Mas os novos donos ofereceram-lhe um relógio tal e qual o que lhe roubaram nessa tarde fatídica. O Marques haveria de pedir-lhe o balanço. O Marques, sem filosofia, era um verdadeiro prestamista. Raios partam os Marques deste mundo.
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