Dói-me o trapézio de estar ao computador a escrever só com uma mão. É aquilo a que os velhos chamam uma moinha que irradia do fundo do pescoço para os ombros. E nem hoje tenho direito ao meu silêncio. Estou aqui, fechada na cozinha à tua espera, a escrever, e lá em cima reina grande galhofeira. Eu já só peço que não abram cabeças nem lábios nem partam os dentes da frente. De resto, deixá-los divertirem-se no escuro, a desafiar-me, eu que hoje não sou juiz de ninguém, nem meu, nem do gato que bufa com o cio, entre o jardim e a estrada e nos desorienta a concentração.
Há um copo de bom vinho, um almoço que foi feito ao jantar, para amanhã, e um jantar que entretanto esqueci que seria preciso fazer. Tão pouco tempo para tanto que se passa hoje, por aqui. Tantas memórias que entram e zarpam a mil para serem sucedidas por outras ainda mais longínquas trazidas por este cd que me deixaste. Eu, o Telmo, a Lisete, o Nuno, o Vasco e o Ildefonso, se chegasse a tempo, num quarto de uma casa igual a todas as outras a abanar o capacete, nas t-shirts brancas e camisas de flanela abertas, nos all star rotos e sujos com aquele cheiro a borracha queimada. Seria? Não me lembro sobre o que conversaríamos, sei que o fazíamos, ou então ficávamos em silêncio a ouvir o kurt gritar como hoje gritei ao volante do meu pequeno-burguês automóvel, no túnel do Marquês, luzes apagadas, volume no máximo, uma tremenda e alegre vontade de fazer aquilo que não é suposto. Hoje tive outra vez 14 anos, e tu não me conhecerias, como ainda hoje estranhas quando me vês abanar os cabelos em vez das ancas. As ancas cresceram a pensar em ti. O kurt haveria de compreender. O Telmo, o Vasco, o Nuno e o Ildefonso estranhariam, mas depois entranhariam. A Lisete imitaria, como qualquer fêmea.
Lá em cima, dois meninos desafiam a autoridade. "Grandma, take me home, Grandma take me home!".
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