domingo, 29 de dezembro de 2013

Ânsias

Nauseada. Dores num estômago que aperta sem razão. É preciso esquecer, engolir o comprimido, dormir sem sonhar, dormir apenas, descansar o cérebro de todas as parvoíces que o têm preenchido. Que este ano que nos deu tanto se vá rapidamente, e que o frio dê lugar ao calor, ao pé nu, à mordidela de mosquito, que não se aguenta de marasmo, grito mudo que se engasga na garganta. Abaixo a mediocridade, abaixo o mau gosto, abaixo o egoísmo. Deixem-me só por agora que intervalo a lágrima, o riso e o grito, quero apenas o lume brando, uma cigarra e um lençol de algodão que apenas sirva de peso, espécie de festas no meu pé.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Não são as coisas perfeitas, mas os olhos de quem as vê

Não são as coisas perfeitas, mas os olhos de quem as vê. Isto é válido para o coxo que passeia na estrada, sem medo da cacimba, para ver a gorda que estende a roupa no estendal do lado que o sol se põe. Também à mulher da tasca lhe parece bonito o enfezadinho que engole um bagacinho para aquecer, lápis na orelha, botas sujas de lama, cheiro a tabaco que se entranha. O homem que acredita que a puta é perfeita, um corpo delicioso, só seu, olhos enamorados, promessas de fidelidade, casa composta, até que a morte nos separe - o próximo cliente. O canito cego de um olho, adorador do brutamontes de cada vez que chega, osso numa mão, cinto na outra, o dono perfeito, amigo para esta e outra vida, onde estará que há três dias não aparece? 
Não são as coisas perfeitas, mas os olhos de quem as vê. Como as mamas que apontam para o chão quando a mulher ganha quatro patas e o marido um rugido. Uma paragem no tempo que apenas se eterniza nos olhos de cada um e no meu cérebro que os imagina a rirem-se de mim, a espreitá-los. 
A lente certa, a retina que se abre em forma de coração, o filtro da beleza colocado nos olhos, pelo peito.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O meu coração tem dores de cabeça

Por mais que trabalhe, por mais que me rie, por mais que acredite, por mais que me esforce, há dias em que me dói a cabeça do coração e tenho de fechar as cortinas e sentir só ao de leve para suportar a dor. Uma espécie de moinha que não avança nem dá tréguas, instala-se em slow motion, alastra-se a um músculo e a outro, e depois sobe e desce até à porta dos olhos. Uma dor é uma dor, mas quando dói o coração o único remédio é fingir que se dorme e a dor passa até de madrugada, quando já não é preciso fingir e o corpo não se silencia.
Vivo como quem exercita, muita corrida, muitos abdominais, querem-se resultados rápidos, que se palpem, que se sinta até do lado esquerdo do corpo. Mas a falta de paciência anuncia-se, uma corrida quixotesca, cega, surda e muda sem destino. Amanhã, tudo passa. Tudo acaba sempre por passar. Nunca gostei de ginásios.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Muscas

Reflicto, sem surpresa, sobre as virtudes de deus ao criar a humanidade e questiono-me em que se distraiu quando criou a mosca. No ano do meu regresso ao Alentejo, as moscas multiplicaram-se por números com demasiados zeros. Até agora, Dezembro escarrapachado, é vê-las moribundas à noite e molengamente vivas ao meio do dia. Nunca tirei tantas moscas do vinho como este ano, até que o homem da casa apareceu com umas fitas que se colam a tudo e as prendeu em locais estratégicos da cozinha. Elas voam e dão carinhosas turrinhas contra as fitas e irremediavelmente se colam, primeiro patas, depois zunzuns que ecoam uma hora, e depois desistem, não sem antes tentarem copular como porcas no cio, mesmo sem forças para levantar uma ou outra pata, fingem, talvez, a moleza do frio que as torna impotentes, mas não retira o instinto de sobrevivência. Enrolam-se, encavalitam-se - tanto trabalho, por deus! - e depois... Coladas numa fita, aspiradas das paredes, sobremesa de aranhas. O que podem contar da vida? Vita brevis. Vinho, fodas e desatinos. Afinal, deus lá sabe o que faz.