Não era preciso o uso de mais nenhum químico. O sol chegou, abrasador como só o Alentejo lhe permite, e com ele trouxe um mundo de lembranças remotas, um mundo preguiçoso, paradoxalmente em actividade frenética para o qual só me apetece olhar, adormecer nele, acordar nele, ficar nele, senti-lo as vinte e quatro horas do dia. Ao contrário do Verão, a Primavera é uma estação com horas distintas que o corpo conhece, e é de aproveitar até às seis, que logo a seguir, depois do sol se pôr começa a brisa gélida que enrijece o suor acumulado no corpo e pede exagero no agasalho. Dorme-se com as mínimas janelas abertas para ouvir tudo e sentir tudo: desde a cacimba à geada da madrugada, ao degelo de tudo e à actividade estonteante dos pássaros. Lembro-me de ouvir dizer que o som dos pássaros era tão ensurdecedor que impedia o sono. Habituei-me depressa. Gosto desta estação porque é de extremos, é inconstante, pede uma noite nua e um cobertor que se puxa quando a lua vai alta. Um sono preguiçoso de manhã, um pequeno-almoço demorado, o regresso ao sono embalado pelo frenesi e pela brisa refrescante e orvalhada. Uma vontade tão forte de pés nus como se nunca um dia tivesse sido preciso cobri-los. Não me admira que os pássaros andem doidos a reconstruir em tempo recorde os ninhos abandonados no Verão passado, e as cegonhas gritem ta, ta, ta, ta, ta. Se tivesse asas, eu própria lhes responderia no mesmo tom. E depois, fazer filhos.