sábado, 7 de maio de 2016

Alice

Todas as semanas, o mesmo ritual. Alice saía de casa ao sábado, pontualmente às 13h36, alheia à meteorologia, aliás, como a todas as coisas que a ciência explica. O casaco dava para tudo: se fizesse frio, aconchegava, se o calor se tornasse insuportável podia guardá-lo na cadeira do lado. Não costumava haver ninguém nas cadeiras das piscinas municipais depois das treze. Chegava ao complexo desportivo e sentava-se, à espera da próxima aula, num nervoso miudinho como se fosse sempre a primeira vez. Não sabia o que era um hábito ou uma rotina, sabia apenas que era tudo igual; que no fim não saberia mais, nem menos, mas durante esses 45 minutos semanais podia efabular sobre o seu objecto de desejo, ali vulnerável, de calção de licra, na cabeça a touca e óculos por colocar. Mal a porta dos balneários abria, Alice contorcia-se para conseguir ver através da janela embaciada se o perfil aparecia. Já era a décima sexta semana, e nunca tinha deixado de aparecer. Nesse momento, esquecia-se de tudo, de quem era, de onde morava, do que tinha de ir comprar a seguir ao Lidl. Durante o tempo da aula de natação, ali sentada na cadeira onde os pais se riem com as gracinhas dos filhos que aprendem a dar os primeiros mergulhos, Alice tinha um tempo e um modo só seu. Seu e dele. Todos os sábados, às 14 horas em ponto, ele, passos de soldado, ao entrar na piscina, levantava a cabeça e siderava os olhos nela. E ela não podia fazer, nem queria, o estômago apertava-se em espasmos, mas as duas órbitas estacavam na mesma direcção, indiferentes a olhares alheios que, todavia, nunca existiam.
E lá ficava ela a vê-lo na piscina, a obedecer a todas as instruções do professor como se fossem ordens para um soldado, executando cada movimento com uma precisão e contenção maníacas, sem necessidade aparente de descansar para recuperar o fôlego.
Alice via-lhe as formas. Por trás, umas costas em V, um rabo duro e grande, musculado. Pela frente, abdominais definidos e uns pêlos aqui e ali. Estaria no fim da adolescência. Teria a idade do filho que nunca teve. Aliás, quando o médico lhe perguntou que interesse lhe despertara o rapaz, Alice não soube responder. Não era nada de mal, respondia, era uma coisa que não conseguia explicar, uma espécie de coisa que a puxava para ele, como se fosse íman, percebe doutor? Como se fôssemos parte de um só, só que eu não sei nadar e ele sabe. Tão bem, doutor, precisava vê-lo, todo direitinho, parece aqueles nadadores profissionais que aparecem na televisão como cometas. Está a ver?
Alice permanecia sentada na cadeira com as pernas muito juntas e as costas debruçadas sobre as pernas para conseguir ver os quatro cantos da piscina infantil. Não era difícil vê-lo no meio das crianças que pulavam e gritavam e se divertiam indiferentes às ordens do professor que ele cumpria com eficácia. Hoje, pela primeira vez, reparara na barriga incipiente de uma menina, daquelas barrigas que vão ficando nas crianças. Esta é das gordinhas, pensou.
Dá-me licença?
Quase salta da cadeira como se as janelas se tivessem aberto e iluminado o quarto onde dormia na completa escuridão.
Claro.
Tira o casaco da cadeira para dar lugar a um casal que se senta animadamente. Frases soltas. Vê-se que são pais de uma daquelas crianças. Gabam, orgulhosos, as tentativas de braçadas.
E aquele ali? Achas que é o professor?
Não. O professor é aquele. Está lá fora... Mas sim, o que é que aquele está ali a fazer?
Alice desconcentra-se. Tem vontade de pegar no casaco e no saco de plástico e sair dali. Já não está sozinha. Não consegue pensar. Mas e ele? O quão triste e desiludido vai ficar quando a aula terminar, olhar para cima e não a vir?
Alice repara que a mulher também não tira os olhos dele. Começa a ficar irritada com aquele ataque à privacidade dos dois. Isto sou eu a dizer. Alice não sabe dar nome ao que sente. Só sabe que é mau.
Muito estranho. Já viste como ele faz os movimentos? Está no tanque de aprendizagem! Achas que aquele marmanjo não sabe nadar? Tem um corpo tão estranho! Junto às crianças... Temos de ver isto na secretaria. Não é normal.
Espero que um dia quando for aprender a nadar não me ponham na piscina das crianças, olha a vergonha...
(...)
Ele não está a aprender a nadar; ele é atrasado mental.
Ah, pois é. Fala baixo. Pode ter aqui os pais a ouvir.
Alice levanta-se, maquinalmente, abre a pesada porta de vidro. Veste o casaco apesar de sentir fogo por dentro. Fogo que nenhuma água vai apagar, porque há anos que não consegue chorar.