segunda-feira, 30 de março de 2015

O trapézio

Dói-me o trapézio de estar ao computador a escrever só com uma mão. É aquilo a que os velhos chamam uma moinha que irradia do fundo do pescoço para os ombros. E nem hoje tenho direito ao meu silêncio. Estou aqui, fechada na cozinha à tua espera, a escrever, e lá em cima reina grande galhofeira. Eu já só peço que não abram cabeças nem lábios nem partam os dentes da frente. De resto, deixá-los divertirem-se no escuro, a desafiar-me, eu que hoje não sou juiz de ninguém, nem meu, nem do gato que bufa com o cio, entre o jardim e a estrada e nos desorienta a concentração.
Há um copo de bom vinho, um almoço que foi feito ao jantar, para amanhã, e um jantar que entretanto esqueci que seria preciso fazer. Tão pouco tempo para tanto que se passa hoje, por aqui. Tantas memórias que entram e zarpam a mil para serem sucedidas por outras ainda mais longínquas trazidas por este cd que me deixaste. Eu, o Telmo, a Lisete, o Nuno, o Vasco e o Ildefonso, se chegasse a tempo, num quarto de uma casa igual a todas as outras a abanar o capacete, nas t-shirts brancas e camisas de flanela abertas, nos all star rotos e sujos com aquele cheiro a borracha queimada. Seria? Não me lembro sobre o que conversaríamos, sei que o fazíamos, ou então ficávamos em silêncio a ouvir o kurt gritar como hoje gritei ao volante do meu pequeno-burguês automóvel, no túnel do Marquês, luzes apagadas, volume no máximo, uma tremenda e alegre vontade de fazer aquilo que não é suposto. Hoje tive outra vez 14 anos, e tu não me conhecerias, como ainda hoje estranhas quando me vês abanar os cabelos em vez das ancas. As ancas cresceram a pensar em ti. O kurt haveria de compreender. O Telmo, o Vasco, o Nuno e o Ildefonso estranhariam, mas depois entranhariam. A Lisete imitaria, como qualquer fêmea.
Lá em cima, dois meninos desafiam a autoridade. "Grandma, take me home, Grandma take me home!".

segunda-feira, 2 de março de 2015

O Marques sem filosofia

Nunca vi o meu pai ser temperamental no mau sentido, com excepção de quando falava no Marques, o dono dos penhores para onde foi trabalhar depois de terminar a quarta classe e que lhe exigiu a compra de um par de sapatos para atravessar o Tejo. O Marques foi a primeira referência do que um patrão seria. Quando o pai chegava a casa, a pé, cansado de números e de contas e de histórias bafientas e prazos que secretamente anunciava aos clientes, o telefone tocava. Era o Marques. "O que é que esse gajo quer?". "Ó homem, claro que tranquei a porta. Sim, tranquei a montra também. Quer ir lá, vá lá você". O Marques era o meu pai a tratar alguém por "você". O Marques era um cabrão que atazanava a vida do meu pai durante o dia, mas também durante as horas em que supostamente deveria estar com a família. Sempre odiei os Marques com quem me cruzei.
O Marques tinha filhos que não queriam saber das histórias tristes de quem penhorava toalhas de linho, salvas de prata, libras de ouro. O meu pai, sabia o Marques, contactava todos os clientes quando o prazo para a penhora se aproximava. O Marques ficava fulo. O Marques lidava secretamente com esta falta aberta de fidelidade e utilizava-a para atazanar o miúdo que lhe granjeou fortuna dos 10 aos 60 anos. É muito tempo a lidar com o Marques. Mas o Marques também tinha um lado bom. Deixava o meu pai trazer as ameixas amarelas, ao abandono, que se acumulavam no quintal por onde entraram os ladrões e levaram tudo o que havia de mais brilhante. Tudo o que eu menos gostava. Eu gostava era dos anjos gordos de marfim, eu gostava de tudo o que era realmente velho e bafiento, eu gostava de poder ter ouvido a história de todos aqueles objectos que produziam tristeza e asco no meu pai. Como é possível encantarmo-nos por uma história que acabou em tristeza, ali, abandonada, nas prateleiras bafientas da loja de penhores do Marques? Aquele da loja de esquina, cujo chão rangia e a casa de banho era tão imunda que não me era permitida passagem?
"Como é que podes ser assim? Conheces o homem há quase tanto tempo como conheces o teu pai!", dizia a mãe. "Aquilo não é um homem, é um escroque. Podemos falar de outra coisa?"
Quando o Marques morreu, o meu pai não foi ao funeral. Quando o Marques morreu, a loja foi comprada por uns doutores que logo a mudaram para as avenidas novas. Na segunda semana, satisfeito com o respeito que lhe era devido pelos novos donos, o meu pai foi assaltado e brutalizado. Nunca mais foi trabalhar. Mas os novos donos ofereceram-lhe um relógio tal e qual o que lhe roubaram nessa tarde fatídica. O Marques haveria de pedir-lhe o balanço. O Marques, sem filosofia, era um verdadeiro prestamista. Raios partam os Marques deste mundo.

Fazer crescer coisas

Há quanto tempo não escreves? Há quanto tempo não te nasce das mãos um vestido, uma alface que rebenta a dureza da terra? Há quanto tempo nada cresce dentro de ti? De ti? Que luto é este? Que luta é esta, que não é tua? Há quanto tempo não sorris com o corpo todo por causa de um raio de sol, de uma onda que te molha o pé, de um menino que salta para o teu colo? Há demasiado tempo. As mãos estão perras, o útero vai secando, o sorriso deixa marcas. Mas tudo se reaprende, tudo há-de sair com a pressa e o destreino de um bebé que se precipita. Mais uma vez. E nesse dia, há-de haver festa na minha aldeia. Com direito a foguetes, a fanfarra, a pés descalços rodopiantes, a beijos roubados e a olhares que prometem, a medo, o que não se sabe se tem. É o sabor a vida.