quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

19h47

Há momentos em que recordo coisas que não vivi, que me lembro do quão perto tiveram. 19h47. Próxima estação: Pragal. Mandaram-me para a baixa. O médico já estava farto de me aturar, já era a terceira ou quarta vez que estava a pedinchar a reforma. Chama-o lá. Já não posso ver o gajo à frente.
Heroine, it's my wife, it's my life.
Uma porca e ainda queria que eu subisse na cadeira para limpar a sujeira toda, eu que ainda estava de muletas do acidente das escadas! Dois lances de escada e o que me amparou foi a cabeça. Tu tens a mania das limpezas, quem te manda lavar o corrimão?
19h49
Relembro a noite fatídica. Não abras a boca. A pistola apontada ao escuro das escadas. Lembras-te da engomadeira, que vivia num vão. Se eu correr agora, só me apanha a perna.
Sabes o que o bombeiro disse? Que só tinha corrido bem porque tinha as pernas gordas! Ahahahah! Eu ali, toda rasgada, sem saber a que país pertencia, e o homem a olhar-me nas pernas, o sem vergonha. Ahahahah!
Os livros caem no chão. Tanta sabedoria para ficar ensopada de sangue num vão de escada de madeira, em frente ao banco onde o senhor António fazia os biscates de sapateiro. Eu que sempre fugi dele, desejava agora ouvir o rádio. Bola branca. Pum. Corre.
20h01, próxima estação: Corroios
Ó homem, já não o posso ver. Acha que consigo reformá-lo por causa do dedo do pé? Eu passo o dia em pé! Olhe, arranje uma cadeira e sente-se. Você vai fazer tudo o que eu disser. Sai daqui, vai à farmácia, compra estes medicamentos todos e não toma, quando o chamarem, só tem de fingir-se maluco.
Eu tenho lá tempo para mim, mulher! É sair de casa de noite, chegar à noite, servir o homem e amanhã é um dia novo, igual ao outro. Quando me pintei, não sabes o problema que foi porque tinha outro: Maria, estás-te pondo bonita para quem? Vai limpar essa cara que mulher minha não sai nesses preparos. Ahahahahah.
I don't know just where I'm going
20h11 próxima estação: Foros de Amora
But I'm gonna try for the kingdom, if I can
O braço apertado. Primeiro à mãe, depois a ti. A mãe não foi a lado nenhum. Vamos passar o Martim Moniz. Dou-te a mão. Aperto-a. Não vais a lado nenhum. Procuras escaramuças que te negam por causa da tua fraca figura, meu menino jesus. Vou cuidar sempre de ti, pelas estradas principais.
Tou? Estou no comboio. Não, não te disse que ia chegar atrasada. Há peixe frito e arroz de pimento no frigorífico. Eu é que sei do teu cartão?! Eu sou a tua mãe?! Não, eu vou com a Maria. Vai comendo que eu não tenho fome. Comemos uma talhada de melancia antes de sair. Eu já estou a chegar.
20h15, não me lembro onde, temperatura exterior, 11 graus
Sai da minha cabeça, dá-me paz, senhor adormece-me. Tudo se atrapalha em duas linhas que se cruzam na minha cabeça. Há muita luz. Oiço tudo, todos, mães que conversam sobre filhos, homens que jogam algum jogo que tem bolinhas, vejo um filme de esguelha no telemóvel do lado. Cega, surda e muda, como a justiça.