domingo, 29 de junho de 2014

Banho maria

A primeira pergunta. Como vou escrever isto se a mão direita está enfiada na tua barriga peluda, à mercê de mordidelas de amor que deixam sangue?
Estou tão zangada hoje, tão zangada que nem o teu ron-ron mecânico me acalma. Os últimos dias de espera, num local que quero esquecer, que é meu e me deu tudo, mas que hoje já nada tem para mim. Um adormecimento entre as oito e as dez da manhã que confirma a enfermidade. Dêem-me novidades que eu não fui feita para esperar e para ser paciente. Eu quero sair daqui, começar quase tudo de novo, estrear umas cuecas, voltar a fazer planos, voltar a poder fazer-te surpresas, surpreender-me a mim, mas não me deixem morrer em lume brando porque eu não sou um chispe. Quero voltar a falar como se o infinito estivesse preso numa das mãos e a gargalhada o soltasse e o eternizasse na noite como um eco de que nos lembramos quando estamos perdidos. Quero voltar a desenhar os meus sonhos, tortos e manvos, mas sonhos, e deixar de acordar porque o que aguardo - seja isso o que for - não acontece. Quero recuperar a minha autonomia literal e a minha pseudo literariedade. O resto quero mesmo que se foda.

terça-feira, 10 de junho de 2014

As contas do dia

Já não sei há quantos anos te conheço, mas sei que mesmo sem saber as contas de cor, conheço o teu corpo melhor que qualquer dia da semana. Por nós não passaram anos, passámos nós, passaram momentos, planos, orçamentos, beijos de vergonha, de desculpa, olhares no chão, mãos no peito. Não gosto de contabilizar nada, nunca fui boa a matemática. Para mim, o deve e o haver são coisas que sinto, não consigo transformá-las em números. Nunca teria jeito para o negócio, não nascemos para calcular, mas para fazer. Foi bom, não foi?

Final da tarde

Aproveitar o dia aqui é aproveitar das seis da tarde em diante, quando o Sol é suportável e só temos de catrapiscar os olhos se quisermos ter uma conversa cara a cara, que usualmente deixamos para horas mais tardias. Agora, há um vento quente a que a gente se habitua com os anos, que ao princípio quase sufocava e agora até sabe bem. A esta hora aqueço os pés ao sol, no cimento quente, por onde passam linhas e formigas que não descansam. Os pássaros barafustam antes que a noite caia e apanham pedacinhos de palha para fazer o leito nocturno. Daqui a uma ou duas horas cedem os sons às cigarras e aos sapos enormes. O vento continuará frio até que os pés se enregelem e peçam o pecado de umas meias quaisquer. Vêm os mosquitos que comem de nós até rebentar, cabeça, pés, dedos, tudo lhes serve. São como amantes vorazes que depois de estar tudo feito, voam para outras paragens. No dia seguinte, é tudo igual.